Folha de S.Paulo - Arnaldo Niskier: Identidade cultural: l�ngua e soberania - 16/08/2004





S�o Paulo, segunda-feira, 16 de agosto de 2004

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TEND�NCIAS/DEBATES

Identidade cultural: l�ngua e soberania

ARNALDO NISKIER

Toda a riqueza do conceito de cultura vem da pr�pria origem da palavra, do latim "cultivare", cultivar. Esp�ritos mais pr�ticos perguntariam: por que gastar o seu latim nestes tempos descart�veis que vivemos? Uma resposta �bvia -pelo menos para aqueles que lidam diretamente com a l�ngua portuguesa e lutam pela sua preserva��o- � que ela � conhecida como "a �ltima flor do L�cio", ou seja, foi a �ltima ramifica��o do latim e, por obra e gra�a de uma pequena na��o de desbravadores, Portugal, espalhou-se pelo mundo, fincando ra�zes na Am�rica do Sul (Brasil), na �frica (Angola, Mo�ambique) e na �sia (Goa, na �ndia; Macau, na China; e Timor Leste, na Indon�sia), tornando-se, entre as 6.000 l�nguas do mundo, aquela falada por 200 milh�es de pessoas -o rico universo da lusofonia.
Nessa campanha pela preserva��o do nosso idioma, v�rios fatos recentes tiveram transcendental import�ncia. Al�m do lan�amento da segunda edi��o do "Vocabul�rio Ortogr�fico da L�ngua Portuguesa", a cargo da Academia Brasileira de Letras, houve o interesse pol�tico manifestado pelo ent�o ministro da Educa��o Nacional da Fran�a, Claude All�gre, por uma aproxima��o objetiva com o mundo da francofonia, representado por 170 milh�es de falantes. Num encontro em Paris, o ministro franc�s prop�s um amplo acordo para que, somados, possamos fazer frente � avalanche cultural e ling��stica da l�ngua inglesa (500 milh�es de falantes), proposta que ele repetiu depois, ainda mais enfaticamente, na Casa de Machado de Assis, no Rio.
Outro fato marcante foram as palavras do escritor Jos� Saramago, na Academia Brasileira de Letras: "N�o podemos permanecer no dom�nio das palavras vazias. � hora de fazer algo concreto para que livros brasileiros circulem adequadamente em Portugal e vice-versa. A cria��o de uma bienal, a primeira das quais no Rio de Janeiro, seria um passo decisivo para que se estabelecesse a harmonia pretendida entre os escritores irm�os". Sendo a express�o de um Pr�mio Nobel da Literatura (1998), o primeiro e �nico em l�ngua portuguesa, o argumento passa a ter enorme peso espec�fico e deve ser levado rapidamente em considera��o.


Devemos estar atentos para o fato de que a l�ngua entre n�s � uma entidade viva, num processo de constante muta��o
A mat�ria foi discutida ainda no Real Gabinete Portugu�s de Leitura, na solenidade de comemora��o dos seus 162 anos. Institui��o com 400 mil volumes, instalada num bel�ssimo edif�cio de estilo manuelino, no centro do Rio de Janeiro, n�o poderia existir melhor cen�rio para pensar o futuro da l�ngua portuguesa, tema provocado pelo escritor Gomes da Costa e colegas portugueses que aqui vieram participar da Bienal do Livro de 1999. O clima de mudan�a, no alvorecer do novo s�culo, facilitou a busca de linhas comuns para valorizar a l�ngua portuguesa.
Para avaliar a import�ncia atual da l�ngua portuguesa, bastam dois dados concretos: ela � hoje falada por 4% da popula��o mundial, numa �rea de aproximadamente 8% do globo terrestre. Pensando no caso do Brasil, pa�s de dimens�es continentais que det�m o maior contingente de pessoas falando o portugu�s, devemos estar atentos para o fato de que a l�ngua entre n�s � uma entidade viva, num processo de constante muta��o.
A explos�o audiovisual promovida por novos meios de comunica��o, como o cinema, o r�dio e a televis�o, e, mais recentemente, a revolu��o provocada pelos computadores e pela internet tendem a introduzir, a todo momento, palavras novas na l�ngua e a "deletar" as antigas. A nossa op��o de "bom portugu�s" n�o deve mais ser regida pela no��o de "certo" e "errado", mas pelos conceitos de "adequado" e "inadequado" (como enfatizou a professora Cilene Cunha).
N�o podemos nunca defender a exist�ncia de um apartheid ling��stico, separando o falar do rico e o do pobre. Temos uma realidade pluriling��stica, levando em conta basicamente que a norma culta deve ser obedecida sobretudo nos c�digos escritos. A compreens�o desse fato enseja uma profunda mudan�a no ensino do portugu�s, sabendo-se que � o povo que faz a l�ngua. Pode-se concluir da� que a leitura liberta e nos leva a conhecer melhor o mundo, o outro e a n�s mesmos. A linguagem manifesta a liberdade criadora do homem.

Arnaldo Niskier, 68, educador, membro da Academia Brasileira de Letras, � conselheiro do Imae (Instituto Metropolitano de Altos Estudos) e secret�rio estadual de Cultura do Rio de Janeiro.


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